14 de fevereiro de 2014

Os fantasmas de Lucas

“- Você está me devendo uma visita.
- Prometo conhecer seu apartamento logo, Pedro. Ainda levo uma sobremesa de boas-vindas.
- Hm, sobremesa? Será que tem gosto do seu beijo?
- Pedro! – falei, repreendendo-o.”


Era hora de acertar os ponteiros de uma relação que andava desajustando o meu tempo. Lucas me ligou imediatamente depois de ter recebido a mensagem no celular e topou me ver mais tarde. Disse que passava aqui em casa, só pediu para não ser aqui no apartamento, muito menos no carro, onde todas nossas recentes discussões tinham acontecido.

8 horas da noite, uma mensagem no whatsapp mostrava que tinha chegado a hora e não daria para fugir mais: “Tô na porta”. Não sabia onde iriamos, então resolvi colocar uma roupa mais leve. Bermuda, camisa polo e um docksider no pé. Passei o perfume que tinha ganhado de Lucas no Natal e desci. Cada número que diminuía no visor do elevador parecia despertar uma contagem regressiva no coração. O que seria daquela relação que eu tornei minha? Por que eu tinha tanto problema em abrir mão das coisas e optava simplesmente por manter algo que me fazia doer quase diariamente?

- Boa noite! – falou Lucas com um sorriso meio tímido, meio encantado em me ver. Ele estava encostado no carro, com uma camiseta azul e uma calça branca de alfaiataria, que o deixava ainda mais elegante e lindo. Nas mãos, mais uma caixa de chocolate e um embrulho.
- Uau, acho que errei na escolha da roupa, né? Posso me trocar rapidinho para a ocasião se você me disser pra onde vamos.
- Tá ótimo assim – falou me entregando os presentes após um abraço e um beijo no rosto. – Espero que você goste. Ouvi esses dias, lembrei daquelas músicas que você me apresentava e, por acaso, encontrei em uma loja. Não esperava te entregar tão cedo, mas tive que comprar pra você.

Emeli Sandé em forma de disco. Lucas, realmente, sabia me surpreender nas escolhas de presente. Entramos no carro e deixei que Lucas me guiasse. Abri o CD e coloquei para tocar no som. Fiquei alguns minutos olhando o caminho para ver se reconhecia o destino. Só depois de um tempo percebi que estávamos indo para a casa de praia da família de Lucas.

- Não esperava que você fosse me trazer para um lugar tão “reservado”.
- Acho que precisamos de um momento nosso. Preciso te ouvir, mas, preciso te explicar algumas coisas...
- Lucas, não precisa... – tentei interromper qualquer discurso que soasse como um reparo de tudo, mas Lucas parecia determinado a falar aquela noite.
- Mateus. Calma! Não quero me desculpar por nada do que fiz. Só preciso que você me ouça. Existe mais de mim do que você acredita saber. Acho que essa é a hora de você saber – terminou de falar enquanto parava o carro na lateral da escada que dava acesso à varanda.

A casa de Lucas era linda. Grande, mas nada exagerado. Daquelas com varanda feita de madeira branca e o interior bem iluminado. Os quartos ficavam no segundo andar, todos bem confortáveis com um toque clássico. Quando entrei não acreditava no que estava vendo. Lucas tinha feito um jantar para nossa noite. Como ele conseguiu planejar isso em menos de um dia? Sem dúvida ele conseguia me surpreender ainda, mesmo depois de mais de um ano de namoro.

- Espero que tenha acertado no salmão grelhado.
- Você não existe! – sorri, pela primeira vez naquela noite. Ele ainda era o cara que se preocupava com cada pedaço da nossa história, com cada minúsculo momento que poderia me fazer feliz. Mas por que tanto ciúme? Por que tanta insegurança?

Lucas tinha colocado The Corrs, uma das suas bandas favoritas, e foi esquentar o jantar enquanto eu procurava alguma coisa para a gente beber.

- Vinho? – perguntei fuçando toda a sua cozinha.
- As taças estão naquele armário ali.

Servi duas taças enquanto olhava aquele menino loiro ali, ajeitando tudo para nós. Seu jeito cuidadoso era algo que eu nunca iria parar de amar, mesmo que isso passasse um pouco do limite vez em quando.

- E como está a terapia?
- Só fui a duas sessões até agora, mas acho que foram bem produtivas. Talvez tenha entendido algumas coisas e me permitido a pensar nelas com mais... maturidade.
- Hmmm. Posso saber quais coisas seriam essas? – Lucas me olhou assim que terminei de fazer a pergunta. Colocou o prato de salmão em cima da bancada da cozinha e bebeu o último gole do vinho em sua taça antes de falar.
- Sabe quando você cresce, mas alguma coisa de criança continua em você? Como se um monstro escuro ainda te assustasse debaixo da cama, como se não bastasse você se esconder, nem correr para o quarto da sua mãe. Inevitavelmente, esse monstro vai aparecer em forma de sombra e estragar momentos, pessoas e coisas preciosas que você conquista na vida.

Os olhos de Lucas marejaram e a voz sumiu. Ele abaixou a cabeça, enxugou a lágrima que quase desceu e pediu desculpa pegando o prato e indo em direção à mesa de jantar. Preferi não insistir naquilo. Mesmo que eu quisesse saber muito sobre esse tal monstro, parecia que isso o machucava de uma forma assustadora. Comemos, conversamos amenidades, contei a ele sobre os dias de trabalho, sobre o meu projeto de escrever um capítulo de um livro que seria feito coletivamente e sobre o quanto senti saudade dele durante esse tempo.

- Sabia que eu prefiro esse Lucas?
- Quem é o outro Lucas que você anda saindo, Mateus? – falou forçando uma cara de bravo que o deixava ainda mais lindo.
- Bobo. Você sabe. Prefiro um Lucas que conversa sobre os nossos dias, que me conta suas ideias, o que se passa aí dentro – falei acariciando seu peito esquerdo. – Gosto mais do Lucas que sorri com leveza, sabe?
- Também gosto mais desse Lucas, Má. Mas, às vezes, ele não consegue ter forças para aparecer, para estar contigo. Tenho medo.
- Lucas, já te disse que serei sempre seu, desde que você entenda que nós dois não somos somente nossa relação.

- Má, acho que tá na hora de você saber o que eu nunca tive coragem de revelar pra ninguém – respirou fundo e continuou. – Quando eu tinha 11 anos, comecei a perceber que eu tinha uma atração maior pelos caras do que por meninas. Nessa época, o tio Alberto foi morar lá em casa. Meu pai ainda era vivo e ele tinha acabado de se separar, precisava de algum lugar para ficar até que resolvesse as questões burocráticas do divórcio. Como meu pai sempre foi muito ausente, tio Alberto passou a me fazer companhia. Com 30 anos na época, ele era meio meninão nos gostos. Disputávamos partidas de videogame, passeávamos na pracinha e, aos poucos, fui admirando aquele cara de uma forma que eu não sabia explicar. Era mais que amor de sobrinho, era mais que amizade, era como se ele fosse essencial em meus dias. Quando ele viajava, nossa... eu ficava com febre, de cama, não queria ir à escola, era sempre a maior confusão.
- Mas seu tio Alberto se casou depois, não?
- Então. Uma noite, meus pais viajaram e eu tinha o tio Alberto só pra mim. Só que aconteceu uma coisa que eu nunca esperava, mas que talvez me fizesse entender toda aquela relação que eu vinha tendo com ele. O tio Alberto bebeu um pouco mais que o normal e eu o vi na sala com o pau duro em frente ao computador vendo vídeo pornô. Ele se assustou, mas foi me explicar o que era aquilo. Meus olhos ardiam de curiosidade, eu queria experimentar aquilo que estava passando no vídeo. O tio Alberto perguntou se eu não queria fazer nele, mas que eu nunca poderia contar aquilo pra ninguém, principalmente pros meus pais. Eu aceitei, feliz da vida, porque sabia que com ele eu não precisava me preocupar, ele nunca iria me machucar, nunca iria me fazer mal algum. Depois daquele dia, a gente tinha uma relação, escondida. Quase sempre ele transava comigo e, como presente, me dava um beijo. Ele era o meu namoradinho, mesmo que eu não pudesse contar a ninguém nunca.
- Lucas, isso é abuso de menor! Seu tio abusava de você. E o pior é que isso não deixou marcas só em seu corpo, deixou em seu comportamento, nos seus sentimentos, na forma como você encara a vida. Ele é realmente um monstro! Que nojo!

Ainda estava extremamente abismado e indignado com toda a história. Lucas contava como se relembrasse cada cena e a revolta só aumentava em mim. A felicidade de um menino pequeno que descobria, do seu jeito, o que ele acreditava ser amor, mas de uma forma nada saudável. O sofrimento de ter que guardar isso tudo, por tantos anos, sozinho.

- Mas eu não tinha ideia de nada disso, Má. Eu apenas amava aquele homem que me protegia, que me fazia realizado, me fazia mais homem por transar – a voz de Lucas embargava a proporção que a história seguia. – Até que um dia, o tio Alberto chegou lá em casa com uma mulher. Foi aí que eu descobri que ele ia se casar novamente. O casamento significava ele sair de casa, deixar todas as nossas intimidades, os beijos de recompensa, o toque noturno do seu corpo de homem no meu de menino. Eu chorei por semanas, trancado em meu quarto, no banheiro, sempre escondido. Até que ele foi se despedir de mim e disse que gostava de mim, mas que aquilo não poderia ser de verdade, que ele nunca poderia ser nada além de meu tio. Mas sempre o tive como de verdade, sabe?

Vi as lágrimas descendo do rosto de Lucas, como se toda a dor daquele dia ainda estivesse ali. Todo o desespero de ver o tio indo embora. Toda a tristeza de saber que nunca foram recíprocos os sentimentos, que ambos viviam uma relação bem distante.

- Depois que ele foi embora, nunca mais o vi. Ele prometeu que vinha me ver ainda, mas nunca apareceu. Mandava sempre lembranças por meu pai pelo telefone. Só o encontrava em reuniões grandes de família, que passei a evitar ir, até deixar totalmente depois da morte de meu pai. Passei os anos tentando superar isso, esse medo de perder de novo, esse medo de me abrir novamente a um sentimento tão bom. Você foi o único, depois de anos, que eu consegui encarar um namoro de verdade, sabe? Não sei explicar, mas você me fez acreditar de novo, que era possível. Mesmo que eu ainda acorde de noite desesperado depois de sonhar com você indo embora. Mesmo que eu ache que outro cara mais bonito vá te roubar de mim.

Coloquei a mão em sua boca e o abracei. Queria que aquele abraço significasse o mundo para ele. O mundo de conforto, de amor, de segurança que eu poderia dar a ele. Queria ser o amor que fica, não aquele medo que o deixaria a qualquer momento e nunca mais.

- Desculpa por não ser o cara perfeito, Má. Só queria que o nosso amor fosse bom pra você.
- Quem disse que eu quero o cara perfeito? Só quero viver bem ao teu lado, amor. Posso te ajudar a se resolver ainda mais em relação a tudo isso?
- Você não faz ideia do quanto me faz bem. Você já está sendo a minha maior ajuda. Prometo tentar ser um namorado menos chato, um homem melhor pra você – sorriu enxugando o rosto.

Beijei Lucas como quem diz “estarei aqui sempre”, só que em forma de gesto. Eu sabia que tudo estava muito difícil ainda, mas eu o amava e aquele jamais poderia ser o momento em que eu iria partir. Lucas precisava de mim e, além do mais, nossa relação merecia outra oportunidade de respirar, ainda que tivesse se afogado por umas semanas. Encontrei naquela noite os braços, os beijos e a cumplicidade do meu namorado, aquele que parecia ter se escondido embaixo de uma coberta, mas que me tinha agora para espantar todos os seus fantasmas.

Mateus

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